Tenho estreita relação com o mundo do trabalho e das corporações. Nos meus quase 35 anos de atuação profissional em grandes e pequenas empresas, com e sem fins lucrativos, ocupando diferentes posições: do estagiário ao diretor, de empregado a consultor, creio que desenvolvi uma sensibilidade para ler os ambientes de trabalho com certo distanciamento.
Sempre cultivei meu interesse pelo comportamento das pessoas no ambiente corporativo e no papel que as lideranças representam nesse local.
Quando comecei os estudos da Tópica do Imaginário, com o Grupo Transbordar, entrando em temas como formação do Eu, narcisismo, Eu ideal e Ideal do Eu, revivi muitas das experiências que tive durante minha carreira. No início achei que estava me desviando do objetivo de aprendizagem, até que entendi que não. Que era justamente aí que estava a chance de reler e redizer uma experiencia tão presente na minha vida. O resultado desse encontro é o esforço para me ex-por aqui, nesse ensaio sobre liderança e narcisismo.
Grande esforço, diga-se de passagem. O que me parece apropriado reconhecer se me proponho a falar sobre narcisismo. Afinal não estaria nele a fonte do sofrimento na Ex-posição? A busca por aprovação e validação egóica? O “bem me quer… mal me quer” sempre bem dito por Gilceley Santos[1]?
Por que relacionar narcisismo e liderança?
Muitas empresas entendem a importância em melhorar seus ambientes de trabalho. Cooperação, capacidade de escuta, empatia e humildade são valores reconhecidos e “papagaiados” como essenciais para obtenção de “resultados positivos”[2]. Apesar disso, o esforço (e investimentos) das organizações na sua incorporação vem se mostrando muitas vezes infrutífero. Por quê?
O comportamento narcisista dos líderes é uma resposta provável. Como líderes megalômanos, egocêntricos e desconectados do outro poderiam fomentar comportamentos ao avesso dos que praticam? …. Simplesmente não podem.
Ora, se já há quase um consenso em torno do potencial desagregador e destrutivo do líder narcisista, por que parece tão difícil mudar essa tendência? Por que o narcisismo dos líderes ainda é traço prevalente nas empresas?
São respostas a essas e outras perguntas que busquei no aprofundamento do estudo dos textos de Lacan, Freud, Perci Schiavon, entre outros, e que exponho aqui, nesse ensaio.
Uma perspectiva psicanalítica do narcisismo
No seu Seminário 1, na tópica do imaginário, Lacan retoma seu conceito de formação do Eu, apresentado inicialmente no Estádio do Espelho, onde o Eu se formaria a partir de uma imagem especular, que antecipa um contorno à desorganização corporal experimentada pela criança no início de sua formação psíquica.
Recorrendo a outros modelos ópticos, com espelhos côncavos, planos ou semitransparentes, Lacan traz novos elementos à formação desse Eu, destacando a função do simbólico (entenda-se linguagem) com o imaginário, na sua regulação.
A partir da releitura dos Escritos Técnicos de Freud, Lacan também traz nova luz à formação do Eu, e aos conceitos de Eu Ideal e Ideal do Eu.
Diferente do viés patológico que o atual senso comum lhe atribui, para Freud o narcisismo tem caráter organizador da libido[3] e tem papel fundamental no desenvolvimento do ego (Eu). Ou seja: narcisismo é “normal”[4] e todos o temos.
Em seu artigo Introdução ao Narcisismo, de 1914, Freud apresenta dois tipos de narcisismo: o primário e o secundário.
Inicialmente não há uma unidade ou conjunto consistente que se possa chamar de Eu. A libido se satisfaz no próprio corpo, no chamado autoerotismo. É essa fase que Freud denomina Narcisismo Primário, de maneira não tão clara e dependendo do momento em que se encontra no desenvolvimento de sua teoria.
Da satisfação autoerótica a libido da criança passa a investir objetos, sendo a própria criança tomada inicialmente como objeto de amor. Nesse ponto entendo que há correlação com o estádio do espelho, de Lacan, onde, embora com uma experiencia de corpo despedaçado, a criança assume uma imagem (imaginário) como a sua, apesar de fora de si, externa. Trata-se de um contorno, o Eu Ideal.
O que Freud define como o Narcisismo secundário é o retorno (ou retração) dessa libido investida no objeto, para o Eu.
No artigo Uma Dificuldade Da Psicanálise (1917), Freud destaca a importância da mobilidade da libido para a plena saúde da pessoa, comparando-a à imagem de uma animal com pseudópodes, que se estendem e se retraem, quando necessário o fortalecimento do Eu, na sua relação com o mundo exterior.[5]
Segundo Freud a escolha objetal se dá de duas maneiras, não excludentes: a escolha objetal narcísica, com amor direcionado a si mesmo, através de um semelhante, e a escolha objetal anaclítica, onde há busca da “mulher que nutre” e do “homem que protege”.
Para o Lacan do Seminário 1, “a identificação narcísica, a do segundo narcisismo, é a identificação ao outro que, no caso normal, permite ao homem situar com precisão a sua relação imaginária e libidinal ao mundo em geral … O sujeito vê o seu ser numa reflexão em relação ao outro, isto é, em relação ao Ideal do Eu”[6]
Ou seja, o Ideal do Eu, como exigência externa, simbólica, passa a reger as identificações do Eu e a regular o imaginário[7]. A satisfação resulta da realização desse ideal, por sua vez, impossível.
Aqui é importante fazer uma distinção entre o fluxo dito normal da libido e o que pode ser entendido como uma estase desse fluxo. É como se houvesse um represamento da libido, que fica estagnada no amor do Eu. Uma interrupção, ou diminuição da libido objetal com diminuição do interesse pelo mundo exterior.
É o que parece acontecer com aqueles que chamamos “líderes narcisistas”, termo que retomo no seu uso comum no mundo do trabalho, de qualificar as pessoas que apresentam um senso irreal de grandiosidade, superioridade, vaidade e autoadmiração.
Por que o narcisismo é prevalente nas lideranças?
Se tais comportamentos são sabidos prejudiciais, por que permanecem prevalentes?
Recorro a Lacan, no Seminário 1, que afirma: “Trata-se aí da sedução que exerce o narcisismo. Freud indica o que tem de fascinante e de satisfatório para todo ser humano a apreensão de um ser que apresenta as características desse mundo fechado, fechado sobre si mesmo, satisfeito, pleno, que representa o tipo narcísico. Ele o aproxima da sedução soberana que exerce um belo animal”[8].
E continua: “O homem mostrou-se incapaz, como sempre, no domínio da libido, de renunciar a uma satisfação uma vez obtida. … Ele não quer renunciar à perfeição narcísica da sua infância, e … procura reganhá-la na forma nova do seu Ideal do Eu”.[9]
Em resumo, umas das chaves de compreensão da prevalência do tipo narcísico é que nos deixamos capturar por esse ideal de satisfação plena, supostamente experimentado na nossa infância, numa escolha objetal narcísica projetada nesses líderes.
Outra chave poderia ser a escolha objetal anaclítica, quando buscamos proteção no líder destemido, que enfrenta os desafios e protege àqueles que demonstram sua lealdade. Um líder pai, severo e protetor.
Há ainda a “imposição exterior” do ideal capitalista, encarnada nesses líderes, geralmente homens, brancos, ricos e “superiores” e bem sucedidos.
Nos identificamos, por nosso próprio narcisismo a esses ideais e nos deixamos enfeitiçar, perpetuando tais comportamentos, pelo menos enquanto dura a ilusão.
Existem saídas?
Estaríamos condenados a perpetuar esse ciclo de busca de satisfação num ideal impossível? Liderança e narcisismo tendem a se perenizar, de maneira indissociável? Certamente que não!
Afirmo isso com a segurança de quem já teve relações profissionais com líderes “notáveis-invisíveis” que, mesmo sendo a minoria, bastam para confirmar a possibilidade.
Mas quais os caminhos possíveis?
Aposto no caminho da análise, que permite acessar uma perspectiva ativa, pulsional, do saber, normalmente obscurecida pelo grau de idealização dos objetos. E é na retificação do sujeito – e por que não da organização? – com o real, presente na boa análise, que a força ativa se apresenta, no seu exercício.
Para isso, o líder narcisista precisa perceber seu comportamento como nocivo, sintoma a tratar. Ele não sabe disso e por isso precisa ser dito. Por quem? Fica a pergunta.
Não são poucos os sinais de alerta disponíveis: clima organizacional ruim, denúncias de abuso, comportamentos agressivos, pouca diversidade e tantos outros que não passam despercebidos, para quem quer ver. A consideração desses sinais como o que realmente são, sintomas de estase da força ativa, do que é vivo, é uma abertura para mudança dessa realidade. Uma organização em análise.
Felizmente é o próprio fracasso de um ideal, certo pois impossível, que desobstrui o saber.
Mas nada está garantido! Como diz o psicanalista Perci Schiavon[10], no seu Pragmatismo Pulsional, a força ativa só se apresenta no seu exercício, como poder de avaliação e escolha ética.
Dado isso, qual a sua responsabilidade?
Bibliografia
Lacan, J. O Seminário livro 1. Os Escritos Técnicos de Freud. Ed. Zahar 1986
Freud, S. Introdução ao Narcisismo (1914). Obras Completas V12. Ed. Cia das Letras. Edição do Kindle.
Freud, S. Uma Dificuldade Da Psicanálise (1917). Obras Completas V14. Ed. Cia das Letras. Edição do Kindle.
Freud, S. O Eu e o Id (1923). Obras Completas V16. Ed. Cia das Letras. Edição do Kindle.
Nasio, J.D. Lições Sobre os 7 Conceitos Cruciais da Psicanálise. Ed Zahar 1997
Schiavon, J.P. Pragmatismo Pulsional – Clínica Psicanalítica. Ed. N-1 edições 2019
Chamorro-Premuzic, T. Why Do So Many Incompetent Men Become Leaders? Ed. Harvard Business Review Press 2019
[1] Gilceley Santos é psicanalista da ALCEP, foi membro do Colégio Freudiano do RJ, da Biblioteca Freudiana de Curitiba e do Colégio Freudiano de Curitiba. Mantém Seminários SublimeAção permanentes na Alcep.
[2] Entenda-se aqui “resultados positivos” sob uma perspectiva capitalista de lucro, acumulação e submissão a ideais.
[3] energia sexual
[4] O termo normal é utilizado nas fontes pesquisadas, mas provoca uma reflexão sobre sua arbitrariedade. Afinal, o que é normal? Ou, normal sob qual perspectiva?
[5] “um protozoário em que a substância viscosa lança pseudópodes, prolongamentos nos quais a substância somática se estende, mas que a qualquer instante podem novamente retrair-se, de modo que a forma da pequena massa de protoplasma seja restabelecida” Freud, S- Obras Completas, V.14 – Uma Dificuldade Da Psicanálise (1917)
[6] Seminário 1 pg 148
[7] “Qual é a minha posição na estruturação imaginária? Esta posição não é concebível a não ser que um guia se encontre para além do imaginário, ao nível do plano simbólico, da troca legal que só pode se encarnar pela troca verbal entre os seres humanos. Esse guia que comanda o sujeito é o ideal do eu.” (Lacan, Seminário 1 pg 166).
[8] Seminário 1 pg 155
[9] Seminário 1 pg 156
[10] João Perci Schiavon, psicanalista, professor da PUC-SP e autor de obras como A Lógica Da Vida Desejante e Pragmatismo Pulsional